Minha Casa...Minha Alma...

Viagem com Tânia por um mar desconhecido...

Textos


POR QUE É DIFÍCIL ACREDITAR NA HUMANIDADE?
 Carolina Malta 
Os que convivem comigo me ouvem falar bastante sobre um livro que eu li no ano passado chamado “A Sombra Interior”, do autor James Hollis, Ph.D. em psicologia e discípulo de Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica. O que mais chama a atenção neste livro é o subtítulo: “Por que pessoas boas fazem coisas ruins?”
Não se preocupem que não vou enveredar na discussão de questões da Psicologia, por se tratar de uma área da qual não tenho qualquer domínio, apesar de ser uma leitora compulsiva deste tipo de obra. Só quero ressaltar que a sensação que eu tive ao ler este livro foi a de que a humanidade teria um avanço se tivéssemos consciência da nossa própria complexidade.
Por que pessoas “boas” fazem coisas ruins? Esta pergunta é essencial para nós que vivemos uma história social tão sangrenta, repetitiva, nociva a si mesma e aos outros e autodestrutiva.
Vemos uma legião de pessoas aparentemente tão bem intencionadas, principalmente em tempos de redes sociais, insurgindo-se contra uma série de coisas, mas, ao olharmos o mundo lá fora, não há mudança alguma. As pessoas continuam estacionando nas vagas dos deficientes, agredindo pessoas ou animais, desviando verba pública, dando dinheiro ao guarda para não ser multado, jogando lixo nas ruas, omitindo-se diante do sofrimento alheio, não devolvendo o troco recebido a maior, furando a fila, protestando contra homossexuais ao tempo em que esconde a própria homossexualidade, entre outros. Há ainda os caridosos demais, politicamente corretos demais, escondendo, nas boas intenções ou boas ações (sempre trazidas a público), a necessidade de reconhecimento por seus atos. Já pensou o vazio que sentirá se ninguém o parabenizar por suas ações?
Tal lista pode continuar indefinidamente, desde que haja histórias humanas a serem contadas. Já afirmou o poeta Terêncio, há mais de dois mil anos: “nada humano me é estranho”.
É tão conveniente olhar a realidade lá fora e supor que o inimigo é alheio a nós. Se o inimigo está lá, ele não está aqui; então, eu não tenho qualquer peso na consciência e obrigação em me autoanalisar. Algum de nós agiria moralmente se soubesse que não seria responsabilizado por nossos atos? Mas quem poderia imaginar que a realidade que vejo “lá fora” é um aspecto de mim? Não é de se admirar que seja tão familiar.
A Sombra é exatamente composta por todos aqueles aspectos de nós mesmos que tendem a nos fazer sentir desconfortáveis. A Sombra é o lado inconsciente, que tendemos a negar sobre nós mesmos e que, ao surgir evidente em nossas atitudes, fazemos imediatas racionalizações para justificar a sua aparição: “Ah, estacionei aqui porque não tinha outra vaga! Estou com pressa!”; “Dei dinheiro porque o guarda me pediu e eu fiquei com medo de confrontá-lo”; “Fiquei com o troco a maior porque, em outra oportunidade, paguei a mais”; “Estou desviando dinheiro da firma porque ganho pouco e tenho filhos para sustentar”; “Não vou ajudar aquele pobre para não estimular a mendicância”.
Um dos sinais mais concretos de que se está possuído pela Sombra são as racionalizações imediatas de que devemos fazê-las. A Sombra encarna tudo aquilo que nos perturba, isto é, tudo aquilo que é diferente de nosso ego ideal, contrário do que desejamos pensar de nós mesmos – ou que ameaça desestabilizar o senso de consciência que nós, confortavelmente, abraçamos.
Quem de nós é forte o suficiente para, de forma consistente, admitir fraquezas, agendas secretas, segredos inconfessáveis? Quem de nós não é carente, vaidoso, às vezes narcisista, hostil, dependente e manipulador? Alguém que devota sua vida a servir os outros de forma compulsiva não guarda secretamente uma angústia ou raiva? O sacrifício de servir aos outros em detrimento de si mesmo é sempre algo bom? Chega a ser uma escolha? Aquele que vence o prêmio de cidadão do ano também não tem a necessidade de ser necessitado?
Quem, na segunda metade da vida, com o mínimo de consciência e maturidade psicológica, não olha para o passado com remorso, alguma vergonha e desalento? No entanto, na época, achávamos que nos conhecíamos, que fazíamos escolhas sábias, prudentes e com as melhores das intenções.
Como já ponderou Mark Twain, “o homem é o único animal que se ruboriza e tem motivo para isso”.
Após passar a vida inteira culpando os outros, é extremamente difícil para nós reconhecermos que a única pessoa que tem, de forma consistente, estado em todas as cenas dessa longa novela que chamamos de vida somos nós mesmos e, consequentemente, carregamos uma boa parte de responsabilidade pela forma como o drama se encerrará.
A proposta do autor é que as manifestações da Sombra sejam trazidas à consciência, sem justificativas ou fundamentações. Já advertiu Nietzsche: “precisamos ser cautelosos ao olhar para o abismo, para que o abismo não olhe para nós”. Experimentem: “eu recebi o troco a maior porque este é o meu lado desonesto”; “estacionei na vaga do deficiente porque não tenho qualquer respeito por estas pessoas e sempre coloco meus interesses em primeiro lugar”; “sou infiel à minha esposa porque tenho um desvio de caráter e tal situação me é cômoda ou sou covarde demais para assumir as consequências de pôr fim ao relacionamento”.
Carl Jung nos apresenta uma solução para tanta incongruência: “o homem deve encarar o problema deste inconsciente caótico”. Esta tarefa dupla, ou seja, admitir nossas condutas, trazendo-as à luz da consciência e aceitando a responsabilidade de fazer escolhas diferentes nos parece óbvia ao olharmos para a vida de alguém. Porém, o autor reconhece: “são poucos os que buscam dentro de si, poucos os que se perguntam se não seriam mais úteis à sociedade humana se cada qual começasse por si, se não seria melhor, em vez de exigir dos outros, pôr à prova primeiro em sua própria pessoa, em seu foro interior, a suspensão da ordem vigente, as leis e vitórias que apregoam em praça pública”.
É por isso que experiências como o nazismo poderiam se repetir nos dias de hoje. Como observou Edmund Burke, no Século XVIII, tudo o que é necessário para o triunfo do mal é o silêncio dos bons. O que acontece quando as “boas pessoas” são, também, agentes do mal, por meio de ações claras, olhando em outra direção ou por meio da indiferença benigna?
Recentemente, um amigo escreveu um texto excelente e citou Maiakovski, poeta russo, que escreveu ainda no início do século XX: “Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada”.
É justamente o que Goldhagen ressaltou em seu livro Os carrascos voluntários de Hitler. Temos o hábito de eleger a Alemanha nazista como o bode expiatório preferido, mas como pode a cultura que produziu Goethe e Beethoven também ter produzido porcos como Goebbels e Himmler?
Não nos esqueçamos de que Hitler não teve de organizar os loucos, mas organizar e motivar pessoas comuns. Sabemos que o número de pessoas que causou o holocausto foi de uma minoria distinta. Também sabemos que o número que protestou foi minúsculo. O grande número foi o de espectadores, indiferentes, intimidados, pessoas comuns que não tiveram interesse em tais assuntos. Tudo foi possível graças a uma cooperação de pessoas comuns, como eu e você.
Eram pessoas comuns e, ainda assim, a maior parte delas continuou a aumentar a dor de seus companheiros humanos – através da ação direcionada ou da indiferença – porque lhes faltava integridade pessoal suficiente, ou coragem, ou ética, ou seja lá o que for, para resistir e aceitar as consequências. É fácil julgar os outros, mas como nós teríamos agido? Como agimos hoje?
É muito mais fácil demonizar nosso vizinho que enxergar a escuridão dentro de nós mesmos. Aprendemos com as repetidas atrocidades da história que para um regime assassino prevalecer não é necessário reunir psicopatas, mas apenas mobilizar cidadãos comuns, amedrontá-los, dominá-los, seduzi-los ou adormecê-los.
Se falarmos no Oriente Médio ou no continente africano, muitos se confortarão por estarem tão longe. Mas e quando vemos as pessoas e os animais morrendo de sede no Sertão, sofrendo em virtude da falta de investimentos para o histórico problema da seca, enquanto o nosso Governo gasta milhões na Copa do Mundo ou nas Olimpíadas, e ficamos calados?
Pessoalmente, encontro-me ainda engatinhando neste terreno da autorreflexão. Não posso, porém, fazer pregações ou incitar as pessoas a colaborarem por um mundo melhor, pois tal postura também seria manifestação da Sombra (risos).
É perfeita esta passagem do livro: “somos todos crianças em recuperação, tropeçando em corpos grandes, papéis grandes, consequências grandes, mas o que varia é a força de resistência, a resiliência, a vontade de nos transformarmos”.
São algumas reflexões que eu quis trazer à tona por ter concordado tanto com este texto e com a conclusão de que o tikkun olam, ou cura do mundo, começa em nós mesmos, justamente com o que não desejamos conhecer de nós mesmos.
Citações:
HOLLIS, James. A Sombra Interior. Por que pessoas boas fazem coisas ruins? São Paulo: Novo Século, 2010.
JUNG, C.C. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2012
*Carolina Souza Malta é Juíza Federal em Pernambuco, foi Procuradora Federal da AGU e é mestre em Direito Constitucional pela UFPE.
Carolina Malta
Enviado por Tânia de Oliveira em 08/09/2014
Alterado em 08/09/2014


Comentários

Tela de Claude Monet
Site do Escritor criado por Recanto das Letras